paisagens do tempo
Naquela data dormi com a lembrança
de um sorrido, desses que a memória engaveta. Bradando de dentro para fora, o
sorriso não me foi dado, roubei de alguém e de um espaço.
O lugar ofertava resguardo aos que
nele acolhiam-se. Era um lar para idosos. Quando chegamos, as paredes, de uma
cor cinzenta, me pareceram, de fato, cinzas, um labor de anos, um terreno de
brasa, sob um sol crestante. Era o calor. Estava muito, muito quente. As ruas
vaporavam. O céu limpo mergulhava no amarelo do sertão, folhas fugiam pelo chão
comprido e as árvores, quase todas nuas e sozinhas, derrotavam a manipulação
fraca daqueles ventos. O Seridó em versos. Uma aquarela.
Adentramos na instituição passando
por um longo corredor que nos levou ao primeiro cômodo da ala feminina. As
formas materiais comprimiam-se para caber no vão quadrado. Uma janela e um
telhado branco grudavam-se à parede em perfeita simetria com a porta. Lembro-me
de uma brisa pausada por entre os tecidos da cortina que não inibia uma
quentura tátil, nem nesgava grande abertura para que os olhos vissem a beleza
do dia. O pequeno ambiente era cortado em três, dividido para cada uma de suas
residentes. Ao lado da cama havia uma mesa de cabeceira com pertences que davam
uma miúda ideia dos traços, saudades e do que faziam, dia a dia, aquelas
mulheres.
Não demorou muito para ganharmos
companhia e mimos. Hospitaleiras e gentis, de diversas formas algumas das
internas se esforçavam para agradecer nossa presença. Chamou-me atenção, nesse
momento, os fios brancos e compridos de uma senhora recolhida em uma cadeira de
balanço. Apática à nossa presença, não fomos, em momento algum, capazes de perturbá-la
ou corrompe-la naquilo que fazia. Sobre sua cômoda estava uma cesta de novelos
e um porta-retratos com a foto de uma criança risonha. Entrededos, duas
alianças. Sobre a cama, cuidadosamente posto, ressoava o sim ritmado e profundo
de um rádio velho. O trinar das notas abduziam aquela alma humana. O encanto da
música suavizava o talhe, os sentimentos e pensamentos. Era perceptível. Deu
paz só de olhar. As durezas e rugas de seu corpo repousavam, desenhavam, junto
ao cântico, uma beleza indefinível. A matéria e sua imaterialidade. Eu não
conseguia me mover.
De repente, no entanto, o rádio
começou a tossir, perdendo vida. A música tremulou até extinguir-se e chiar. O
rosto da senhora escureceu e trovejou. As rugas no canto do seu olho mudaram de
posição. Ela transformou-se, reclamava, invocava o regresso da melodia... Um
desespero tomou conta do meu corpo também. O que eu faço? O que eu faço? Que
injusto! Volta, volta, volta! De súbito comecei a me aproximar. Antes que
chagasse até ela, porém, a música renasceu. Os olhos desejantes daquela mulher
rebrilharam, agradeceram o retorno do velho amigo, talvez único amigo. Ela
reacomodou a cabeça na cadeira, fechou novamente os olhos e sorriu.
Não me viu. Mas eu pensei, durante
dias, naquele sorriso. Sorriso epifania para questionamentos
filosóficos-ontológicos-poéticos e não-conclusões.
Há de ser que o isolamento seja
arrebata*dor. Que vidas sejam fechadas e sejam conduzidas por pessoas que lhe
são estranhas. A imensidão do auto-encontro faz-se voo. Alma é rara.
Nós “somos” e por isso vivemos.
Talvez seja essa a condição que faz do ser humano um ávido eterno por sua
salvação.
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