infinidade
O sol surgia preguiçoso no céu que
acordava. Os raios ainda madrugados ultrapassavam o telhado... Os passarinhos
cantavam seu retorno, os galos trabalhavam... pra mim, era o dia ganhando
movimento, ruídos, vibrações. Mais uma vez estreando seus contornos visíveis e
invisíveis...
Eu esperava outro sinal para levantar
da rede. E lá estava ele em desenhos de som: O
chinelo se arrastava barulhento pelo caminho, a passos que não desistiam nunca. Era isso a minha avó Ana. viVer a
vida, sua beleza, sem desistir.
Eu pulava da rede, passava por baixo
das outras, e corria pra cozinha aproveitando o cheiro espalhado do café.
Lá, aquele sorriso falava...
...
Há pouco mais de um ano nos despedíamos da guerreira
que fora minha vó dona Ana.
E o que sinto, não sei dizer.
Ainda é dor.
Mas os rastros libertários de amor
iluminam as ruas escuras da ausência, quando a saudade pesa.
---
A senhora sempre entendia os meus maiores sonhos, meus
mais discretos sonhos. Quem sabe um dia eu consiga expressar a sua poesia... A
senhora deixou tanto.
[...] Na liberdade do sítio. Na estrada de terra. Na
sagração do silêncio. No extenso rio do tempo. Nas tardes de cantorias e
conversas. No poço das histórias que contava. Na maçã divida em dois, em três,
em quatro... Ao alimentar a terra lavrando-a com amor. Nos assovios da
madrugada. No alpendre estendido. No encanto das sangrias. Na viagem frienta e
feliz no caminhão. Nas casas de marimbondos. No desflorescer das estações. No
encontro das águas. No ecoo dos gritos. No ninho dos passarinhos. Na sombra da
craibeira. No mar do açude. No açude sem mar. Na poeira dos currais. No leite
ordenhando dentro de um copo amarelo. No barulho das aves. No entorno das
mangueiras. Nas veias do riacho. No redemoinho... Nos frutos e na altura dos
galhos das árvores. Na voz dos ventos. Nas áureas que recebeu. Na água da chuva
que salvou. No fogão a lenha. Nas cores, nos aromas, nos sabores. Nos armazéns de
aventuras. Nos seguros esconderijos. Na
brenha da caatinga, no solo pedregoso, na areia que brilha e nos brejos. Nas figuras da pá, enxada, no gadanho, na selaria. Na vida dos animais. Nos
vínculos da vida. Na carroceria dos caminhos. Nos prelúdios de invernia. No
canglor dos sinos. No crepitar da madeira queimando... Nos muros de lenha. No
cercado de pedra. Nas forragens de
palha. No cultivo, na colheita. Nos milhos assados. Nos filhos ao
redor da mesa. Nos netos correndo ao redor dos pais... Nos doces, nos tragos e afagos em cabelos molhados lavados pelo açude, nos
narizes vermelhos, nas mãos enrugadas, nos pés descalços, nos corações
aquecidos pela avó. Na esperança dos dias. Na luz das estrelas e da lamparina. Nos cravos
adormecidos. Na magia da noite. Na raiz das plantas. No eterno lar das
palavras... No pôr do sol do sertão, na porta da lua. No açoite do ar frio. No sopro que lava os
telhados... No exílio do abraço. No posto da cadeira. Na viuvez
dos lugares que ocupou. Na espiritualidade na benção. Nas mãos enlaçadas as do
meu avô. No sorriso verdadeiro, gratuito, sábio, agreste. Na teia de vivências
recordadas. No amor. Nos confins das minhas dúvidas. No relevo da lembrança. Nos
largos dias que sonhou, que cuidou, que amou, que viveu. Nos meus olhos
afoitos, afogados... Na presença. Na nudez desses encantos indespíveis. Na
infinidade dentro de cada memória.
Na despedida da porteira, EU ANDO. Ando porque a
senhora me ensinou e ensinou àqueles que tiveram a graça de tê-la em vida.
Porque me lembro do invisível daquele sorriso. Dos passos insistentes,
obstinados, teimosos. Das mãos de sertaneja. Dos olhos iluminados e crentes. Do
acordar antes que o sol.
Minha criança aprendeu: as coisas boas terminam cedo.
Mas, vó... O sol se escondeu. Abrigou-se com você. Deixou as nuvens nublá-lo.
Perdeu o brilho por um momento.
Mas vamos continuar vivendo sua poesia. Amando nossos
dias. Acordando antes que o sol. Andando pra perante seus passos barulhentos,
teimosos e obstinados... incapazes de desistir.
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